O colunista Antonio Penteado Mendonça, levantou, em um texto publicado em novembro de 2021 no Estadão, um tema bastante urgente e sério para a questão médica no país. O título é alarmante: “Brasil está diante da ameaça de ter 50 mil médicos formados por ano, mas sem trabalho para todos”.
Com mais de meio milhão de médicos ativos, cerca de 25 mil profissionais se formam anualmente – período em que são abertas cerca de 38 mil vagas de graduação em medicina. Apesar destes números, as vagas para residência médica são estimadas em apenas 17 mil.
Para Mendonça, a distorção que gera o déficit de vagas para a atuação de novos médicos é parte de uma ameaça histórica contra os serviços de saúde no Brasil, o que também inclui “menos leitos, centros de atendimento, equipamentos, medicamentos”, cujo produto desta cultura são “mais filas, demoras, complicações e mortes desnecessárias”.
Em 2020, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informou que o número de médicos no Brasil era o dobro do total desses trabalhadores no início do século.
De acordo com a Demografia Médica – 2020, no ano de 2000, 230.110 mil médicos atuavam no Brasil. 20 anos depois, essa quantidade subiu para 504.475 mil. O mesmo estudo revela que a proporção de médicos por habitantes no país é superior a do Japão, enquanto se aproxima dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido – este último conhecido pela eficiência do seu National Health System (NHS), assim como o Brasil é reconhecido mundialmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Esse crescimento, conforme indica o coordenador da pesquisa, Prof. Dr. Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), se deu pela abertura de escolas médicas e expansão de vagas em cursos de medicina que já existiam.
DISTRIBUIÇÃO E CONDIÇÕES DE TRABALHO
O problema, entretanto, não é somente a quantidade de médicos formados. À primeira vista, o excedente de profissionais em uma área específica é realmente preocupante, como destacado na coluna de Antonio Mendonça. Todavia, o foco também deve ser direcionado justamente à denúncia da dificuldade de distribuição desses graduados pelo território nacional a fim de atender as reais e imediatas demandas da sociedade.
O então gestor do CFM na época da divulgação do estudo citado, Dr. Mauro Ribeiro (2019-2022), acertou na crítica feita na ocasião. “Temos médicos em número suficiente para atender a população brasileira, o problema está na distribuição. Assim como outros profissionais, os médicos estão concentrados nos grandes centros”, alertou.
Por exemplo, enquanto Vitória (ES) tem proporção de 13,71 médicos por mil habitantes, municípios com até 5.000 cidadãos sofrem com apenas 0,37 – problema que não é exclusivamente relacionado à presença de médicos, como também é no que se refere à atividade de outros profissionais de saúde.
“Localidades com esse perfil – população pequena, sem atividade econômica definida ou com baixos indicadores de desenvolvimento humano – não atraem e fixam profissionais. Neles, o mercado não se autorregula. Assim, cabe ao Estado, por meio de políticas indutoras levar e manter médicos e outros profissionais nestas áreas. Para isso devem ser oferecidas condições de trabalho e remuneração adequadas”, disse o então 1º vice-presidente do CFM, Dr. Donizetti Giamberardino.
O estudo mostrou que no Sudeste e no Sul, a proporção de médicos por habitantes é de 3,5 para cada mil, que é a média dos países vinculados à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – média que deve ser ultrapassada, dada a tendência constante de aumento de formações. Mas, em termos nacionais, a presença é de apenas 2,38.
“No Norte, que tem uma taxa 43% menor do que a média nacional, a maior proporção de médicos é encontrada no Tocantins, com média de 2,01. A menor aparece no Pará (1,07). No Nordeste, a pior situação está no Maranhão (1,08) e melhor índice fica na Paraíba, com 2,04. No Sul, a média regional é de 2,68, com o Rio Grande do Sul apresentando 2,89; Santa Catarina 2,64 e o Paraná, 2,49”, explicou o CFM.
PÚBLICO X PRIVADO
As desigualdades regionais também abrem espaço para outra discussão: a presença dos médicos disponíveis no serviço público versus na iniciativa privada.
A Demografia Médica – 2020 indicou que há uma concentração de médicos no setor privado, que, de acordo com o CFM, oferece melhores condições de atuação. O estudo da USP evidencia que 50,2% dos médicos atuam na iniciativa privada e no serviço público, 28,3% trabalham apenas na iniciativa privada – nos planos de saúde ou em consultórios particulares – e 21,5% atendem apenas no serviço público. Nesse sentido, a presença iniciativa privada é de 78,5% e, no serviço público, 71,7%.
No entanto, é o setor público que realiza mais atendimentos à população. De acordo com levantamento da IN3 Inteligência para a Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia para Saúde (ABIMED), o setor público realizou, em 2020, 973 milhões de atendimentos. Em comparação, o serviço privado realizou 381 milhões. Em 2021, foram 1,13 bilhões do serviço público (não há dados estabelecidos da iniciativa privada neste período).
Mesmo assim, é a iniciativa privada que mais investe: em 2020, o setor público movimentou US$ 1,73 bilhão, enquanto privado colocou em fluxo US$ 4,02 bilhões. “Essa diferença ocorre, em parte, pelos tipos de procedimentos buscados no setor privado e no público. O privado acaba absorvendo a demanda de média e alta complexidade quando se trata de procedimentos. Então, o valor agregado da iniciativa privada acaba sendo maior”, explicou o Dr. Fernando Silveira Filho, presidente executivo da ABIMED.
QUALIDADE DOS NOVOS PROFISSIONAIS
Em matéria publicada no mês de dezembro de 2020 no portal do CFM, a entidade declarou preocupação com esse salto, sobretudo com a qualidade na capacitação destes profissionais. “Está claro que a formação desenfreada de novos médicos vai impactar o mercado de trabalho. Porém a preocupação maior da entidade é com a qualidade dos novos formandos, principalmente aqueles oriundos das faculdades que não oferecem campos de estágio, hospitais de ensino e outras condições para a boa formação”, diz o texto, acompanhado da declaração do então 1° secretário do CFM, Dr. Heraldo Cabeça, que revelou que o temor do Conselho é com “saúde da população, que está sendo atendida por médicos formados em escolas desestruturadas e sem locais de prática”.
Mendonça é mais específico e enfático no diagnóstico da problemática quando escreve que os planos de saúde podem ser afetados pela situação. “Alguns planos, pressionados pelos custos e pela concorrência, aceitarão profissionais menos capacitados em seus quadros de prestadores de serviços e isso afetará seu atendimento, para não falar nos custos de responsabilidade civil pelos erros médicos cometidos”, comentou.
Daqui a 43 anos, provavelmente o país terá em média 1,5 milhão de médicos para cerca de 250 milhões de habitantes, segundo projeção do pesquisador e professor Drº Milton Martins (USP).
Em resumo, fica o desafio: como crescer em números de profissionais atuantes, avançando na melhor distribuição de profissionais entre as regiões, melhorando as condições de trabalho dos médicos e qualificando as suas atividades por meio de capacitação técnica efetiva?
Eis uma questão fundamental para o futuro da medicina no Brasil, e somente o debate amplo, na esfera pública, envolvendo entidades, organizações, profissionais, políticos e a população, poderá encontrar caminhos para as possíveis soluções da “pendência”.
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